O milagre dos pássaros Conto, 1979 | Posfácio de Ana Miranda
Aconteceu na localidade de Piranhas, em Alagoas, às margens do rio São Francisco. Ali moravam o capitão Lindolfo Ezequiel e sua mulher, Sabô. O capitão era famoso por sua atividade de pistoleiro e por ser casado com a mulher mais desejada da região, o que lhe exigia vigor físico e o exercício da fama de matador. Certo dia, chegou ao lugar Ubaldo Capadócio, caboclo alto e de boa estampa que se destacava nas artes da literatura e da música popular: era autor de folhetos de cordel e, num forrobodó, tocava harmônica como ninguém. O poeta era requisitado nos quatro cantos para animar batizados, casamentos e até velórios. Além disso, era dado ao galanteio: arrebatava corações e mantinha duas famílias, uma na Bahia, outra em Sergipe, tinha três esposas e nove filhos. Em Piranhas, Ubaldo Capadócio caiu de amores pela mulher de Lindolfo Ezequiel. Desavisado, foi parar na cama de Sabô. E o capitão, que estava de viagem, voltou antes da hora. Para se safar dessa enrascada e virar tema de relato afamado, Ubaldo Capadócio precisou contar com a presença de numerosas testemunhas, muitos pássaros e uma ajudinha da Providência. Em O milagre dos pássaros, Jorge Amado transforma uma história consagrada oralmente em matéria literária. Narrativa breve, entre o conto e a novela, o texto é um episódio de traição e desonra típico da tradição popular do sertão nordestino. Com o humor e a habilidade narrativa que lhe são próprios, o escritor recupera e eterniza esse caso desabusado que ganhou a boca do povo e correu o sertão.
CHEGA DE SAUDADE Ruy Castro
O milagre dos pássaros foi escrito em 1979, por encomenda, para ser distribuído como presente de fim de ano de uma instituição financeira. A primeira edição comercial viria apenas em 1997. Neste relato, Jorge Amado brinca com algumas das mais tradicionais formas brasileiras de narrativa e compõe uma história de aventuras com peripécias de heróis tipicamente populares. Causo de traição, ou, em outras palavras, uma anedota sobre um temido capitão que, apesar da valentia e da fama de matador, tornou-se um notório corno, O milagre dos pássaros é ainda o testemunho bem-humorado de um “milagre”. Para elaborar a história, em que se confundem o ocorrido e o narrado, a veracidade e a invenção, Jorge Amado inspirou-se na poesia de cordel e nos contos maravilhosos. A participação de personalidades reais, como Heloisa Ramos, viúva do escritor Graciliano Ramos, que segundo o narrador visitava a cidade quando o milagre dos pássaros ocorreu, confere à história caráter de fato irrefutável. Além dela, o ilustrador Calazans Neto e o poeta Florisvaldo Matos também são citados no texto como testemunhas vivas de que o herói do conto, Ubaldo Capadócio, era capaz de fazer até defunto rir.